segunda-feira, 17 de maio de 2010

Raul Sonado visto por Millôr


(Raul Solnado (à direita) conversando com José Alberto Braga (JAAB) jornalista,
e especialmente humorista, português - viveu anos no Brasil -
ao lado de António (com acento agudo no ó), o Chico Caruso de Portugal.)

Um dos maiores comediantes portugueses de todos os tempos - trabalhou também no Brasil -
Raul Solnado é actor de teatro, cinema e televisão, e empresário teatral.
Luar surgindo a leste no primeiro nome, sol no segundo, Raul tem vinte e quatro horas no onomástico. Nasceu num tempo em que tudo era ao vivo, mas, atento à tecnologia, fez-se logo carbono do ridículo, depois xerox do desprezível, afinal fax do presunçoso - e já tem para a holografia alguns truques humorísticos na manga. Lhe ensinaram que a vida é curta, por si mesmo percebeu que a vida é perto. E quando aprendeu que a vida é transmissível por via sexual, sentiu logo enorme sentimento de culpa. Mas, com descendência em dois continentes, só nesse sentido condena a incontinência. Feminista, finge de machão, na esperança de ser catequizado. Pra ele homem e mulher continuam a ser círculos concêntricos, no momento o mundo gay luta por círculos excêntricos. E aceita que o homem pode ser o lobo do homem mas é, definitivamente, o poodle-toy da mulher.

Generoso nato, nasceu mignon como solução para o problema demográfico - se todos fossem assim cabia mais gente no mundo. Mas lembra que, com o mesmo material, Deus poderia fazer um homem bem melhor, aqui assim, nos ombros. Nasceu em Lisboa mas, crítico, acha que ela já foi Lismelhor. Português desde sempre, aceita o fado, mas nem tanto o destino. E depois de tudo que aconteceu em Portugal no século XX, ficou tão antimilitarista que não topa nem conversas generalizadas. Prudente, quando entra em enrascada o primeiro que faz é perguntar onde fica a saída. Gosta de ser considerado impagável, mas nunca na bilheteira. Tem extraordinária expressão corporal, toda no espírito.
Decidido, quando vê uma bifurcação imediatamente segue os dois caminhos. Mas nunca foi sem voltar, daí o segredo de estar sempre. Menino prodígio, aproveitou essa dádiva e reservou uns dias de infância para os anos de hoje. Ri pouco, faz rir muito, fala envolto num crepom de malícia, e todo seu humor é anfiguri. Dentro de sua alma vibram jograis, saltam andarilhos, vivem polichinelos, cantam bufões, se escondem saltimbancos, bobos, truões, entremezistas, patuscos e pelotiqueiros, todos os palhaços do rei. De cuja sabedoria ele se apropriou pra ser o rei dos palhaços. Pois, pra ele, fazer rir é fácil - escapar com vida é que são elas. Acha que o teatro e televisão se incompletam e o teatro é melhor pois ninguém tem a coragem de desligá-lo no meio da piada. Acredita que o humor desarma o espírito mas não tanto que possa desarmar Saddam Hussein. Mas, depois de cem milhões de Homo Faber, dez milhões de Homo Sapiens, está certo de que, se o mundo não estourar nos ares, chegou enfim nossa hora, a hora do Homo Ludens.

Uma frase perdida: "A vida é sempre em volta." A pergunta metafísica: "Que fazer do homem que não gasta o destino?." Uma dúvida de fé: "Se Deus existe, porque nunca veio ver meu espetáculo?" Epitáfio proposto: "Agora já é tarde."

E aí está o Raul feito e medido. Do Solnado eu nem falo.
Publicado no UOL, 10 de Maio 2001

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