terça-feira, 30 de outubro de 2012

FADO BRASILEIRO

Vem este poema a propósito do ano do Brasil em Portugal

Abre-me os braços, oh bela Lisboa!
Aqui estou. Tracei-te em meu destino.
Corpo febril, ardendo em pleno cio,

quero saber-te a mãe, nunca o algoz.

Faz tempo que te corro como um rio

que busca avidamente pela foz.


Inda lembras Lisboa, quando um dia

chegastes, poderosa, em meu Brasil?

E eu, na mata virgem, nem sabia

que tu havias meu povo domado.

Escrava do teu trono, fui servil.

Ama-de-leite de todo um reinado.


Trago comigo toda a minha herança.

Modas de amor, cantigas de ninar.

Trago o chorinho e as rodas de criança.

Xaxado, marcha-rancho e boi-bumbá.

E trago da viola, o desafio

de escolher-te cheia de esperança.


Trago meu sol, para aquecer-te o frio.

Minha Amazônia, fértil e verdejante.

Meu oceano atlântico do sul.

Trago-te um rio de água borbulhante.

Os cântaros da chuva em pleno estio.

E pássaros cantando em céu azul.


E mais ainda, trago-te as rendas

das mulheres rendeiras do Sertão.

Da feira popular, o sanfoneiro.

Da meninas bonitas, trago prendas.

Trago o Cordel e o galo madrugueiro.

E as fogueiras do meu São João.


Então não vês, Lisboa, que és minha?

Não vês que o Tejo corre em minha veia,

e que o meu Pelourinho é a tua Alfama?

Quero-te minha amante, ao meu jeito.

E apesar da "Carta do Caminha",

guardo-te inteira dentro do meu peito.


Abre-me os braços, o bela Cidade!

Que eu trago o brado livre do poeta,

desenterrado dos "navios negreiros".

O grito do "quilombo" em liberdade.

Eu trago a dor dos fados brasileiros.

E um coração morrendo de saudade.


Kátia Drummond.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

*Ocê gósdevinho?*

Estão a tratar-nos como se fossemos ignorantes e inúteis, estamos a comportarmo-nos como se eles fossem inocentes e bem-intencionados…já não sei o que pensar, nem deles nem de nós.
Vou fingir que estou embriagada, e para ilustrar aqui vai uma anedota sobre a prova de vinhos em Minas Gerais de Luiz Fernando Veríssimo.

*Degustação de vinho em Minas*


- Hummm...

- Hummm...

-* Eca!!!*

- Eca?! Quem falou Eca?

*- Fui eu, sô! O senhor num acha que êsse vinho tá com um gostim estranho?*

- Que é isso?! Ele lembra frutas secas adamascadas, com leve toque detrufas brancas, revelando um retrogosto persistente, mas sutil, que enevoa as papilas de lembranças tropicais atávicas...

*- Putaquepariu sô! E o senhor cheirou isso tudo aí no copo?!*

- Claro! Sou um enólogo laureado. E o senhor?

*- Cebesta, eu não! Sou isso não senhor!! Mas que isso aqui tá me cheirando iguarzinho à minha egüinha Gertrudes depois da chuva, lá isso tá!*

- Ai, que heresia! Valei-me São Mouton Rothschild!

*- O senhor me desculpe, mas eu vi o senhor sacudindo o copo e enfiando o narigão lá dentro. O senhor tá gripado, é?*

- Não, meu amigo, são técnicas internacionais de degustação entende? Caso queira, posso ser seu mestre na arte enológica. O senhor aprenderá como segurar a garrafa, sacar a rolha, escolher a taça, deitar o vinho e, então...

*- E intão moiá o biscoito, né? Tô fora, seu frutinha adamascada!**

*- O querido não entendeu. O que eu quero é introduzi-lo no...

*- Mais num vai introduzi mais é nunca! Desafasta, coisa ruim!*

- Calma! O senhor precisa conhecer nosso grupo de degustação. Hoje, por exemplo, vamos apreciar uns franceses jovens...

*- Hã-hã... Eu sabia que tinha francês nessa história lazarenta...*

- O senhor poderia começar com um Beaujolais!

*- Num beijo lê, nem beijo lá! Eu sô é home, safardana!*

- Então, que tal um mais encorpado?

*- Óia lá, ocê tá brincano com fogo...*

- Ou, então, um suave fresco!

*- Seu moço, tome tento, que a minha mão já tá coçando de vontade de meter um tapa na sua cara desavergonhada!*

- Já sei: iniciemos com um brut, curto e duro. O senhor vai gostar!

*- Num vô não, fio de um cão! Mas num vô, messs! Num é questão de tamanho e firmeza, não, seu fióte de brabuleta. Meu negócio é outro, qui inté rima com brabuleta...*

- Então, vejamos, que tal um aveludado e escorregadio?

*- E que tal a mão no pédovido, hein, seu fióte de Belzebu?*

- Pra que esse nervosismo todo? Já sei, o senhor prefere um duro e macio, acertei?

*- Eu é qui vô acertá um tapão nas suas venta, cão sarnento! Engulidô de rôia!**

*- Mole e redondo, com bouquet forte?

*- Agora, ocê pulô o corguim! E é um... e é dois... e é treis! Num corre, não, fiodaputa! Vorta aqui que eu te arrebento, sua bicha fedorenta!..*

*Luiz Fernando Veríssimo*


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Desalento...



Princesa Desalento



Minh'alma é a Princesa Desalento,

Como um Poeta lhe chamou, um dia.

É revoltada, trágica, sombria,

Como galopes infernais de vento!



É frágil como o sonho dum momento,

Soturna como preces d'agonia,

Vive do riso duma boca fria!

Minh'alma é a Princesa Desalento…



Altas horas da noite ela vagueia…

E ao luar suavíssimo, que anseia,

Põe-se a falar de tanta coisa morta!



O luar ouve a minh'alma, ajoelhado,

E vai traçar, fantástico e gelado,

A sombra duma cruz à tua porta…



(Florbela Espanca, «Livro de Soror Saudade», in «Poesia Completa»)